ESTADÃO 27 de julho de 2022 | 03h00
A decadência institucional brasileira está chegando a um ponto de saturação. Os metais que sustentam o sistema republicano estão em vias de derreter. O fato é que não existe constitucionalismo autêntico sem firmes e inegociáveis valores ético-políticos. A Constituição desenha a democracia; a política a torna verdade pulsante ou mera farsa normativa.
Infelizmente, inúmeros artigos constitucionais não passam de palavras vazias; a Lei está bem escrita, mas não tem eco nas ruas da vida. Fala em justiça para entregar impunidade. Promete dignidade humana, enquanto milhões de brasileiros vivem na miséria absoluta. Diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas faltam médicos, medicamentos e hospitais. Garante o pleno exercício dos direitos culturais, quando é incapaz de ensinar Matemática e Português a nossas crianças. Ou seja, a Constituição regra um país sem existência concreta.
A situação é de absoluta gravidade. O cidadão honesto e trabalhador não mais suporta ser enganado. Não mais confia na política e muito menos nos políticos. Os poucos que ainda merecem respeito são insuficientes para manter a crença nas instituições. Sem cortinas, a democracia foi tomada de assalto pela imoralidade radical e pela estupidez histriônica. Mais do que comprometer conquistas políticas da democracia, o fenômeno faz ruína de pilares fundantes da civilização, fazendo entoar a barbárie hostil sobre os postulados da razão pensante, da ordem, da decência de procedimentos, do entendimento e da paz social.
O impressionante é que aqueles capazes de reagir com altura e altivez se omitem – salvo raras exceções – entre lençóis de comodismo, apatia e covardia. Fazem de conta que o problema não é com eles, apegando-se à vã ilusão de que a tragédia não irá atingi-los. Esquecem que, quando a noite cai, a escuridão não separa tolos, ingênuos ou covardes. No vazio da virtude, os dias passam, tornando problemas remediáveis em cancros mortais.
Sim, o mensalão e o petrolão existiram; não adianta querer negar uma realidade autoevidente; a corrupção não foi uma invenção acusatória, mas um sistema real de sustentação ilícita do poder; centenas de delações premiadas reconheceram fatos delitivos e devolveram bilhões de recursos públicos indevidamente auferidos por corruptos e corruptores. O mínimo que se esperava, portanto, era que os envolvidos jamais voltassem a transitar pela política democrática. Afinal, democracia digna requer idoneidade moral e retidão de caráter.
Objetivamente, caberia aos partidos políticos expulsar todos aqueles envolvidos com atos ilícitos ou contrários à ética pública. Isso porque, no mundo teórico da lei, a filiação partidária, como condição constitucional de elegibilidade, impõe aos partidos o dever de proteger a democracia de políticos inaptos ao exercício digno da representação popular. Adicionalmente, o artigo 37 da Constituição estabelece a moralidade como princípio fundante da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Ou seja, na eventual oficialização de candidatura ostensivamente imoral ou lesiva à ética pública, caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF), exaltando a guarda da Constituição (art. 102 da Carta Magna), declarar a inconstitucionalidade da pretensão eleitoral viciada.
Em tempo, a recente Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/22, de iniciativa do Senado, é mais uma homenagem ao desmando constitucional. Sem adentrar em pormenores, basta dizer que projetos de emenda à Constituição traduzem o que há de mais complexo em termos de técnica normativa, pois impensável querer mudar a Lei Maior da Nação de forma açodada, sem dialética política profunda ou despida de exauriente processo legislativo competente. Todavia, segundo informações da imprensa, a referida PEC nem sequer passou pela Comissão de Constituição e Justiça, violando frontalmente o artigo 356 do Regimento Interno do Senado Federal.
Sublinha-se que o referido parecer, no caso, é cogente, pois não se muda a Constituição da República por rasos achismos parlamentares nem por remendos políticos de última hora. Logo, a matéria – que cria mais R$ 40 bilhões de benefícios extrateto de gastos em ano eleitoral – poderá ser levada à análise do STF. Já há, inclusive, partidos ventilando a hipótese. Na verdade, os políticos já precificaram que tudo de relevo acaba sendo levado – bem ou mal – ao STF; então, a demagogia corre solta, jogando-se o rojão no colo do Supremo para que, se quiser, assuma o ônus da decisão impopular.
No cair da tarde, o Brasil navega completamente sem rumo. A Constituição deixou de ser nossa bússola. O choque de poder é frontal. A legalidade afunda. O desentendimento reina. A democracia sofre. O povo agoniza. A civilização retrocede. Antes do abismo, uma eleição em outubro. Será que ainda há tempo de salvar o Brasil?
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ADVOGADO, É CONSELHEIRO DO INSTITUTO MILLENIUM