A Constituição Brasileira, promulgada em 05/10/1988, é uma lei anacrônica, esdrúxula, imprópria para uma carta-magna, remendada para atender interesses do Poder e repleta de benevolências, privilégios e direitos sem deveres, obrigações ou contrapartidas . Fomenta centralização da justiça no STF, insegurança jurídica, morosidade da justiça, estado policial , ausência de civismo, desigualdades, desarmonia nos Poderes, centralização dos impostos na União, desordem pública e insegurança social. Jorge Bengochea

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

AGORA É PARA VALER



ZERO HORA 27 de outubro de 2014 | N° 17965


CLÁUDIO BRITO*



Terminado o período eleitoral, conhecidos os vencedores, ouvidas as explicações dos derrotados, a pergunta que se impõe: e agora? Agora é pra valer! Não deveria ser tão otimista e talvez devesse dizer que é apenas um desejo e que muito precisará acontecer para que seja mesmo “pra valer” o que o futuro vai desenhar.

Tem gente querendo mudar sem mudar coisa alguma. E precisamos, com seriedade e afinco, fazer valer o que as urnas determinaram. Os eleitos ontem e os parlamentares têm o dever de reformar a política no Brasil. Faz meio século que era esse o clamor de João Goulart, as reformas de base que lhe custaram o mandato e acabaram por jogá-lo ao exílio. E ainda esperamos por elas.

Há, todavia, um bom caminho traçado e em boa parte percorrido. Falo dos vários projetos de reforma política existentes nos escaninhos do Congresso e mais ainda, da proposta da OAB, que vai tentar outra vez a experiência do projeto assinado pelo povo. Dilma reelegeu-se garantindo que conduzirá a reforma. Os pontos indispensáveis estão lançados. Há uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal com seis votos já conhecidos, fulminando o financiamento das campanhas eleitorais pelas empresas. Sirva de modelo à emenda constitucional indispensável. Mais ainda, que as coligações desapareçam das eleições proporcionais. Nas majoritárias, que sejam verticais. Quem for aliado no Pará, deverá sê-lo aqui também. Na atividade dos deputados federais, que não exista mais o espaço nebuloso das emendas orçamentárias, que apenas servem para a corrupção. Ampliem-se os mandatos dos governantes, mas sejam vedadas as reeleições para o Executivo. Nosso Rio Grande já cumpre essa norma, mesmo que ela ainda não exista. Outra vez, quem tentou reeleger-se não chegou lá. Necessário revermos o acesso aos tribunais superiores, cujos cargos devem ser coroamento de carreiras iniciadas pelo concurso público. Se isso e um pouco mais tiver que nos conduzir a um novo pacto, venha logo a convocação de uma Constituinte. Um novo texto, inteiro, não apenas um remendão. Trabalho sério, de gente grande, pra valer. Venha um novo período, que reproduza a elegância das manifestações do governador eleito Sartori e do vencido Tarso ao anunciarem a transição. As acusações de corrupção e os escândalos foram insuficientes para derrotar Dilma. Espera-se que as investigações sejam encaminhadas e rea- lizadas com rigorosa precisão, como a presidente prometeu.

*JornalistaCLÁUDIO BRITO

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

CONSTITUIÇÃO DE 1988: CONTEMPORÂNEA EM PARTE



ZH 06 de outubro de 2014 | N° 17944


LUÍS HENRIQUE MARTINS DOS ANJOS*



A Constituição de 1988 possui essa característica desde sua concepção e vem mantendo sua essência, inclusive durante o período em que se pregaram as noções de desconstitucionalização e de desregulação do Direito, que significariam retirar da Constituição muitos dos seus direitos e eliminar das leis vários regulamentos, ampliando a autorregulação do mercado. Os direitos e garantias fundamentais são a parte de nossa Constituição que deve ser preservada.

Então, por que não visualizamos a eficiência na concretização desses direitos? Por várias razões, dentre elas uma vem das normas da mesma Constituição de 1988 referentes ao desequilíbrio da repartição de competências e rendas na federação, ao frágil e antiquado modo de divisão das funções do Estado e ao anacrônico sistema eleitoral que estimula partidos não programáticos e patrimonialistas. Essa parte da nossa Constituição ajuda a inviabilizar a outra.

Diante da magnitude de refundar o pacto federativo, da reforma tributária, da reforma eleitoral e da instituição de autêntica corte constitucional separada do Poder Judiciário ordinário, além de outros mecanismos de maior autonomia técnica para as funções de administração e de fiscalização, somente a mudança que se origine da manifestação do Poder Constituinte terá a legitimidade e a possibilidade de obtenção do consenso necessário para realizar a reforma política.

Defendemos, em artigo anterior (ZH, 26/9/14), um modelo de constituinte originária específica e exclusiva para essa reforma, semelhante, quanto à forma, à constituinte que resultou na atual Constituição francesa de 1958, que não visou derrubar a ordem constitucional democrática instaurada em 1946 naquele país, nem alterar os seus direitos e garantias fundamentais, mas reformular a organização política dos poderes.

Essa reforma política poderá fazer prevalecer o que de mais valioso a Constituição Cidadã incorporou à sociedade brasileira, tornando-se a nossa Constituição contemporânea por inteiro.

*Professor de Direito Constitucional, mestre em Direito Público/UFRGS

sábado, 4 de outubro de 2014

NOVA CONSTITUINTE OU SIMPLES EMENDAS?



ZH 04 de outubro de 2014 | N° 17942



VICTOR JOSÉ FACCIONI*



Coincidente com as eleições deste ano, o dia 5 de outubro também lembra o 26º aniversário da Constituição em vigor, promulgada em 1988. Notícias na imprensa dizem de movimentos para uma nova Constituinte, o que não creio seja viável, e oportuno. Uma Constituinte poderia até vir a paralisar ainda mais a atividade econômica do país, mormente na área de investimentos empresariais, provocando maior redução da atividade econômica nacional. Ademais, por emenda constitucional, pode-se, e muito bem, tratar de eventuais correções de nossa Constituição.

Nossa Constituinte, ao deixar a medida provisória no presidencialismo, quando desistiu do parlamentarismo, engessou a democracia plena, em nosso país, pois a medida provisória no presidencialismo possibilitou verdadeira ditadura administrativa, e nossa legislação passou a ser desdobrada por medida provisória. Igualmente, deixou destruir a federação, pois no primeiro turno havia descentralizado para os Estados e municípios os encargos mas também os recursos tributários, mas no segundo turno e ou, por medida provisória, o governo conseguiu centralizar os recursos, ficando os encargos descentralizados aos Estados e municípios, que, sem os recursos, passaram a usar a “bandeja na mão, em busca de complementação de socorro, de recursos federais”.

A medida provisória no presidencialismo abastardou o Legislativo, a própria democracia, e a federação mormente do ponto de vista do processo financeiro e administrativo.

Ademais, urge uma reforma política, que resumiria, no mínimo, na extinção da medida provisória, ou se mantida, adotar- se um presidencialismo com poder moderador, nos moldes da França e de Portugal. E, para viabilizar o custo financeiro das campanhas, aproximar o candidato ao eleitor, na adoção do voto distrital misto, em eleições disputadas pelos candidatos com os votos obtidos dentro do respectivo distrito eleitoral.


*EX-DEPUTADO CONSTITUINTE

sábado, 13 de setembro de 2014

ASSEMBLEIA CONSTITUINTE E REFORMA POLÍTICA


ZH 13 de setembro de 2014 | N° 17921


PLÍNIO MELGARÉ*



Na disputa eleitoral atual, vários candidatos de diferentes partidos (re)esquentam o tema da convocação de uma Assembleia Constituinte para fazer a reforma política. Chama a atenção que na última eleição presidencial já havia candidatos com esse discurso. E a presidente Dilma, acossada pelas manifestações que varreram o país, era favorável, no ano passado, a um plebiscito para autorizar a convocação de uma Assembleia Constituinte que tratasse da reforma política. Palavras vãs.

A questão que se apresenta é a legitimidade desse processo. A ciência política e o Direito reconhecem, desde a Revolução Francesa, que a autoridade máxima da Constituição firma suas raízes em uma espécie viva de força política que consolida a sua própria autoridade. É o chamado poder constituinte originário: o poder do povo de fazer a sua Constituição, de definir o documento jurídico máximo que ordena e valora a sua vida comunitária. Uma Assembleia Constituinte desvinculada desse poder é impensável.

Por certo, há momentos históricos que postulam uma nova Constituição: momentos de viragem histórica que exigem uma nova ordem de valores jurídico-políticos e legitimam plenamente outra ordem jurídica. São momentos em que o povo reclama o seu direito fundamental de escrever a sua Constituição. Nessa quadra, há um rompimento com o sistema constitucional vigente, que se vê desgastado. Como se deu no Brasil no final do período ditatorial.

Enquanto a Constituição for legítima – acaso, a nossa deixou de ser? –, a convocação de uma Assembleia Constituinte cheira a golpe – ou, no mínimo, a proposta demagógica. A Constituição prevê o modo de ser alterada: é a via da reforma e da emenda. Muda-se a direção do andar, mantendo-se por um caminho estável. Esta é a única forma legítima para a alteração. Aliás, a classe política conhece esse caminho. Desde 1988, dezenas e dezenas de emendas já foram aprovadas. Por que nunca a reforma política?

Propor uma Constituinte às vésperas de uma eleição, além de um discurso eleitoreiro, pode esconder intenções escusas daqueles que querem de forma totalitária impor sua visão de mundo fora das regras democraticamente construídas pelo povo brasileiro.


*ADVOGADO E PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA PUCRS E DA FMP


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Na obra Direito Administrativo Brasileiro (Malheiros Edit. 25 Edição.2000.pg 57), Hely Lopes Meirelles afirmou que "a nossa Constituição da República, do ponto de vista formal, é mal redigida, assistemática e detalhista, a redação é confusa, a matéria é distribuída sem sistema, encontrando-se o mesmo assunto em vários capítulos, e desce a detalhes impróprios do texto constitucional." Também  considero a Constituição Brasileira uma lei anacrônica, esdrúxula, imprópria para uma carta-magna, remendada para atender interesses do Poder e repleta de benevolências, privilégios e direitos sem deveres, obrigações ou contrapartidas . Já tem mais de 70 emendas que invertem finalidade, centraliza o transitado em julgado e de todas as decisões judiciais no STF, causa insegurança jurídica, aumenta a morosidade da justiça, estimula a impunidade dos autores de ilicitudes e impõe um estado policial , ausência de civismo, desigualdades, desarmonia, desordem pública e insegurança social. 

Ela já vem sofrendo atentados ao longo de sua existência deste 1988, pois os dispositivos são alterados ao bel prazer dos Poderes, sem o aval de uma Assembleia constituinte. Por esta razão defendo o enxugamento da Constituição Federal, tirando os privilégios, as imunidades, as disparidades, os textos confusos, o estado policialesco, o corporativismo, as estruturas arcaicas e a forma corporativa e assistemática de legislar e executar obrigações. Que as reformas política, social e jurídica sejam feitas em leis complementares específicas para mudar de acordo com as tendências, circunstâncias e cenários, mediante estudo, análise e aval dos Poderes democráticos. É uma questão muito séria para ser tratada em parte e de forma pontual e partidária.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

OS 800 ANOS DA MAGNA CARTA




O ESTADO DE S.PAULO, 14 Julho 2014 | 02h 04


PAULO ROBERTO DE ALMEIDA - 

Dentro de pouco menos de um ano (mais exatamente em 15 de junho de 2015), a Magna Carta completará 800 anos. Os interessados em conhecer o seu conteúdo, em inglês moderno, podem consultar no site dos Arquivos Nacionais americanos o link:  http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/translation.html

Uma explicação contextualizada sobre o seu significado histórico, e sobre a influência que ela teve na formação do constitucionalismo americano e no próprio espírito do povo americano, figura nestes dois outros links da mesma instituição, bastante instrutivos, por sinal: 


A Carta é uma espécie de obrigação formal assumida por um rei substituto com barões ingleses revoltados, mas ela constitui, sem dúvida alguma, a base de todas as liberdades modernas, a do princípio democrático, a do governo pelo consentimento dos governados, a da taxação com representação, a do respeito à propriedade pessoal e a do devido processo legal. "Nenhum homem livre", lê-se num de seus parágrafos, "será preso ou destituído de suas posses, ou considerado fora da lei, ou exilado, ou de alguma forma prejudicado (...), salvo mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pela lei do país. A ninguém será negado o direito ou a justiça." Antes de apor suas assinaturas, os barões confirmavam: "Todos os costumes e liberdades acima citados, que nós garantimos existir neste reino que a nos pertence, têm de ser observados por todos, religiosos ou laicos, e todos devem respeitá-los com respeito a todos os demais".

Seria interessante, a esse respeito, focar sobre o caso brasileiro para tentar determinar, exatamente, até onde ainda não chegamos em relação à aplicação plena dos princípios da Carta. Os barões da Inglaterra medieval estavam se revoltando contra um rei ladrão, João Sem Terra, que foi obrigado a assinar um compromisso de consultar os seus súditos nos casos especificados na Magna Carta. No nosso caso é um pouco diferente, o que complica as coisas: aqui talvez haja uma conivência entre os barões e os ladrões.

Quando os nossos barões - que por enquanto são só ladrões - se revoltarem contra a prepotência do Estado, contra as exações fiscais do príncipe, contra a falta de representação real no corpo parlamentar, contra as deformações da democracia, contra a corrupção (que eles mesmos patrocinam, ao comprar parlamentares, ao sustentar lobistas, ao subsidiar partidos mafiosos), contra as políticas especiais de puxadinhos e improvisações (que eles mesmos, ademais, pedem ao Estado todo-poderoso), quando, enfim, os barões capitalistas conseguirem conduzir uma fronda empresarial contra o Estado, contra os corruptos que eles mesmos colocaram no poder, então, talvez, nos aproximaremos um pouco, pelo menos, dos valores e princípios da Carta de 1215.

Estamos um pouco atrasados, como todos podem constatar. Mas não só nós.

Os franceses também, pois só foram conduzir uma fronda aristocrática depois que os ingleses já haviam decapitado um rei, que abusava justamente de seus poderes. Estes consentiram com o início de outro reinado, depois de uma breve experiência republicana - um pouco sangrenta, para qualquer padrão -, mas resolveram tirar esse mesmo rei, desta vez pacificamente, depois que ele resolveu ser tão arbitrário quanto o decapitado, pretendendo retomar os antigos hábitos absolutistas da sua família. Os ingleses, então, "importaram" uma nova dinastia do continente, aprovaram um Bill of Rights que limitava sensivelmente - na verdade, podava totalmente - os poderes do novo soberano e desde então vivem pacificamente com os seus soberanos de teatro (mais para commedia dell'arte do que tragédias shakespearianas). Em todo caso, eles são a mais velha democracia do mundo, em funcionamento contínuo desde 1688.

Foram seguidos mais tarde, ainda que no formato republicano, mas absorvendo todas as bondades da Magna Carta e do Bill of Rights, por seus expatriados da Nova Inglaterra e das demais colônias, que se revoltaram justamente quando os ingleses, ou melhor, o seu rei empreendeu uma tosquia muito forte nos rendimentos dos colonos, decidindo aumentar as taxas sobre o chá e cobrar outros impostos. Ah, os impostos...

A fronda dos americanos foi uma revolução, como eles a chamam, mas com isso criaram a primeira democracia moderna da História, que se mantém até hoje, com a mesma Constituição original e algumas poucas emendas. Enquanto isso, os franceses estavam guilhotinando o seu rei, para construírem um poder ainda centralizado e opressor.

Não se pode, obviamente, comparar a Constituição americana com nenhuma das nossas sete Cartas Constitucionais - com dois ou três grandes remendos no curso de nossa História autoritária - e as dezenas, quase uma centena, de emendas à mais recente delas (talvez não a última), tratando dos assuntos mais prosaicos. Tem uma que regula trabalho de domésticas. Alguma outra Constituição abriga algo tão bizarro? Nada contra trabalhadores domésticos, mas não creio que eles devam figurar numa Constituição.

Enfim, os nossos barões, que também são extorquidos pelos príncipes que nos governam, não parecem ter muita disposição para mudar o cenário, menos ainda para decapitar algum soberano. Talvez devessem: quando a carga fiscal passar de 40%, por exemplo, quem sabe eles resolvem fazer a sua fronda empresarial? Afinal de contas estamos falando de dois quintos da riqueza produzida pela sociedade que são apropriados pelo Estado, o que representa duas derramas coloniais. Pela metade disso Tiradentes e seus amigos se revoltaram contra a prepotência da Coroa. Libertas quae sera tamen?


Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor universitário



quinta-feira, 10 de julho de 2014

O POVO DIANTE DA LEI

REVISTA VEJA 05/10/2013 - 07:49

Marco da redemocratização, Constituição faz 25 anos 


Reportagem de VEJA mostra como a Carta Magna fez do Brasil um país democrático, mas suas fraquezas intrínsecas impedem que ela desfrute, ao completar 25 anos, da aura de outras Cartas, como a americana

Gabriel Castro e Daniel Jelin




Longo caminho - Gente comum celebra em Brasília a abertura da Constituinte (no topo) e protesta contra as mazelas do país (ao lado): esperanças realizadas pela metade (André Dusek/Estadão Conteúdo e João Ramid)

As fotos que ilustram esta página mostram dois momentos da história recente em que o Congresso Nacional foi tomado por pessoas comuns. A primeira data de 1º de fevereiro de 1987: enquanto no plenário da Câmara se instalava a nova Assembleia Constituinte, do lado de fora centenas comemoravam nas ruas e escalavam a cúpula desenhada por Oscar Niemeyer. A segunda é um flagrante da noite de 17 de junho de 2013, quando uma multidão marchou por Brasília para protestar, gritar palavras de ordem, pedir “mudança”. A primeira foto fala da esperança de que uma nova Constituição pudesse lançar as bases de um país democrático e moderno. A segunda lembra que a esperança só se cumpriu em parte. Não há dúvida de que a democracia avançou no Brasil no último quarto de século e de que a Constituição teve um papel essencial nesse processo. Mas é significativo que na miríade de cartazes levados às ruas durante as manifestações de junho, e na enxurrada de mensagens postadas nas redes sociais, a Carta raramente tenha sido mencionada como um ponto de referência simbólico. Quando ela se tornou assunto, foi de modo negativo: em resposta àqueles que expressavam na rua o seu repúdio à corrupção e à classe política, o governo sugeriu, de maneira funesta, que se reformasse o sistema político por meio de uma “Constituinte específica”. Entre o esquecimento dos manifestantes e o perigoso arroubo do Executivo, fica claro que a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 não desfruta, em seu 25º aniversário, da aura quase sagrada de que se reveste, por exemplo, a Carta dos Estados Unidos. Por que isso aconteceu? Em grande parte, devido às suas fraquezas intrínsecas. O que não significa que ela não deva ser, para além de respeitada, defendida.

100 visões da Constituição de 1988

O que a Constituição significa para você? O site de VEJA fez essa pergunta políticos, empresários, intelectuais, artistas e profissionais das mais diversas áreas. O resultado é um grande painel das impressões que a Carta de 1988 causa nos brasileiros.


Em todas as 341 sessões consumidas na redação da Carta Magna, o fantasma do regime militar permaneceu na assembleia ao lado dos constituintes. Isso deixou uma marca profunda no texto final, que não se limita a elencar alguns direitos fundamentais. Para assegurar que os abusos da ditadura não se repetissem, os constituintes crivaram o texto de dispositivos “garantistas”. Pelas mesmas razões, o ambiente era propício para que todas as vozes e todos os pleitos que gozassem de alguma representatividade - e tivessem sido calados nos anos anteriores - fossem acolhidos. Hoje senador, Paulo Paim (PT-RS) admite que se esforçou para incluir no texto o máximo de dispositivos trabalhistas: “Eu tinha clareza de que tudo aquilo que ficasse gravado, só com uma emenda à Constituição, que exige três quintos dos votos, poderia ser retirado. Por isso, trabalhei muito para que o tratamento do tema fosse o mais amplo possível”, diz ele. A declaração de Paim reflete bem o espírito com que os constituintes abordaram sua tarefa e explica por que a Constituição pode ser descrita como prolixa (a décima mais extensa do mundo), segundo dados do projeto Comparative Constitutions (CCP), paternalista (apenas dez fixam mais direitos) e quase surrealmente detalhista: ela incluiu até mesmo um parágrafo dedicado à administração do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Como muitos direitos previstos necessitam de leis para se materializar, criou-se um enorme ônus de regulamentação: ainda hoje, 112 dispositivos aguardam nessa fila.

Os mais graves pecados foram cometidos na área econômica. O exemplo notório é o artigo 192, do capítulo que trata da ordem financeira. Ele fixou em 12% o teto da taxa de juros no Brasil. “Foi um desastre”, lembra o economista Maílson da Nóbrega, que era ministro da Fazenda em 1988. “A Constituição reforçou o dirigismo um ano antes da queda do Muro de Berlim e incorporou preconceitos infantis contra o capital estrangeiro, a empresa privada e os direitos de propriedade.” Nos anos que se seguiram à promulgação, os artigos sobre economia e tributação se chocaram continuamente com a realidade. E o pragmatismo, felizmente, acabou prevalecendo sobre o pensamento mágico. A maior parte das 74 emendas aprovadas desde 1988 tem a ver com esses dois temas. No começo dos anos 90, por exemplo, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, os dispositivos que limitavam a entrada de capital estrangeiro foram derrubados, permitindo revoluções como a da telefonia. Segundo um estudo recente realizado pelo gabinete do constituinte e atual senador Francisco Dornelles (PP-RJ), a lógica tributária instituída pela Carta de 1988 foi totalmente desmontada nos últimos 25 anos. Ah, sim: o artigo sobre os juros de 12% foi expurgado em 2003.

Seja pela necessidade de desfazer o que não faz sentido, seja pela necessidade de regulamentar o que foi deixado em aberto, o fato é que a Constituição brasileira nunca atingiu a plena eficácia em seus próprios termos. É instrutivo, mais uma vez, o paralelo com a Constituição americana - exemplo máximo de Carta “sintética”. Promulgada em 1789, ela cuidou unicamente de fixar um sistema de governo, criando pesos e contrapesos para a atuação de cada um dos três poderes, e de estabelecer os limites da atuação do governo central, assegurando a autonomia dos estados. A famosa Bill of Rights (Carta de Direitos), coleção de dez emendas que tratam das garantias individuais, só veio à luz em 1791 - e mesmo assim depois de muito debate sobre a conveniência de incluir ou não regras desse tipo na Constituição. O desenho austero faz com que a Constituição americana mantenha seu vigor, apesar dos mais de dois séculos de vida.

VEJA pediu a mais de 100 políticos, empresários, intelectuais e artistas brasileiros que falassem sobre a Carta de 1988 (os testemunhos podem ser lidos na edição para tablet e no site de VEJA). Muitos reconhecem avanços no texto que enterrou o arbítrio do regime militar, mas a nota que soa com maior frequência é a do ceticismo em relação a ela. “A nossa Constituição dá margem a muita confusão”, diz o cantor Ney Matogrosso. “Para mim, a Constituição é coisa para inglês ver - e ingleses nem têm Constituição”, diz o filósofo Luiz Felipe Pondé. “A Constituição de 1988 foi um avanço, um marco, um símbolo da conquista de todos os brasileiros. Mas já estou querendo saber é da nova Constituição, de dois mil e...”, brinca o humorista Fábio Porchat.

A Constituição não é perfeita. Mas também é verdade que redigir uma Constituição é trabalho para momentos históricos especiais - aqueles em que uma sociedade passa por ruptura ou transição. Fora dessas circunstâncias, o trabalho de uma Assembleia Constituinte, em vez de expressar uma vontade comum, construída em meio ao ruído e a duras penas, pode expressar tão somente a vontade do grupo político momentaneamente mais forte. “Soa aventureiro e até mesmo irresponsável clamar por uma Constituinte ou querer colocar um termo nesta Constituição”, diz o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. A Carta de 1988 é o marco da redemocratização do país, e nem seus críticos questionam sua legitimidade. Bem ou mal, o texto proporcionou o mais longo período ininterrupto de democracia que o país já atravessou. Não é o caso, portanto, de ceder à tentação de reformá-la em grandes blocos, muito menos de deitar abaixo o edifício inteiro. É o caso de depurá-la, segundo os mecanismos que ela mesma prevê. O especialista em direito comparado americano Tom Ginsburg, um dos mentores do CCP, lembra que a Carta de 1988 já nasceu sob críticas. “Alguns estudiosos previam que ela não duraria nem cinco anos”, diz. “Ao contrário, ela tem ajudado o país a construir uma base de governança e pelo menos parcialmente motivou iniciativas para tornar a sociedade mais justa. Há um longo caminho pela frente, mas, por ser flexível e contar com mecanismos para a sua reforma, o Brasil pode seguir com ela nessa caminhada.”


Constituições comparadas


De 189 constituições analisadas pelos pesquisadores do projeto Comparative Constitutions (CCP), a carta brasileira se destaca pela extensão, pela quantidade de direitos que procura assegurar (frequentemente sem sucesso) e pela variedade de poderes que confere ao Executivo. Nascido na Universidade de Illinois (EUA), e atualmente apoiado pelo Google, o CCP mantém uma base de dados com a legislação de quase todos os países do mundo. Confira abaixo as medidas de 189 constituições, apuradas pelo CCP, e o índice de desenvolvimento humano de cada país, segundo dados da ONU.

MOROSIDADE DA JUSTIÇA





quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

LEIS, BUROCRACIA E CORRUPÇÃO

JORNAL DO COMERCIO 05/02/2014


Guilherme Socias Villela


Há excesso de leis no Brasil. Leis de cláusulas (mais ou menos) pétreas. Leis que “colam”. Leis que não “colam”. Leis feitas para não serem cumpridas – ou destinadas a viger consoante o momento. Mas, claro, há leis sérias.

É inegável que excesso de leis gera burocracia. E que essas leis são, algumas vezes, interpretadas de forma a criar dificuldades para, depois, serem oferecidas “facilidades” aos interessados – tudo grudado na moldura da corrupção.

Observe-se, diante disso, alguns aspectos de regras hoje existentes na constelação legislatória nacional. A atual Constituição da República Federativa do Brasil (1988) – a qual, infelizmente, não teve o privilégio de ser comentada pela genialidade do brasileiro Pontes de Miranda (1892-1979) – possui 258 artigos e emendas. A Constituição do Rio Grande do Sul – que, na prática, apenas ornamenta estantes – possui 334 artigos e emendas. A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, por sua vez, possui mais de 289 artigos e emendas.

Ademais, os atos legislativos brasileiros atualmente totalizam mais de meio milhão de leis constitucionais, orgânicas, ordinárias, decretos, resoluções, portarias – afora regulamentos editados diariamente por entidades federais, estaduais e municipais (diz a lenda: “um novo regulamento a cada dez minutos”!). Ocorre que o dispositivo constitucional determina que “ninguém pode ignorar o desconhecimento da lei”. (Mas como? Nem atentos profissionais conseguem acompanhar esse delírio legiferante e burocrático.)

Por outro lado, registre-se aqui que a atual Constituição dos Estados Unidos da América – aprovada no longínquo ano de 1787 – possui atualmente apenas 7 artigos e 27 emendas. Tão-somente!

Por fim, restara uma aparente contradição. Não é o Brasil a atual terra do futebol? Daí um fato curioso: as atuais regras do jogo de futebol contemporâneo – desde o “The Field of Play” até o “The Corner Kick” – tem apenas 17 regras! Claro, foram importadas do futebol inglês.

Vereador do PP, ex-prefeito de Porto Alegre e economista