A Constituição Brasileira, promulgada em 05/10/1988, é uma lei anacrônica, esdrúxula, imprópria para uma carta-magna, remendada para atender interesses do Poder e repleta de benevolências, privilégios e direitos sem deveres, obrigações ou contrapartidas . Fomenta centralização da justiça no STF, insegurança jurídica, morosidade da justiça, estado policial , ausência de civismo, desigualdades, desarmonia nos Poderes, centralização dos impostos na União, desordem pública e insegurança social. Jorge Bengochea

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A CARTA DEMOCRÁTICA


ZERO HORA 30 de setembro de 2013 | N° 17569

EDITORIAIS



Um quarto de século é tempo suficiente para consolidar as instituições e suas relações com todas as manifestações da cidadania. É esse o tempo em que está em vigor o documento que assegura as garantias constitucionais e faz prevalecer a ordem democrática no país. A Constituição brasileira está às vésperas de completar 25 anos de sua promulgação e, por mais que se insista em apontar deficiências e defeitos, o que sobressai numa comemoração são certamente as suas melhores virtudes. A Carta Magna é excessivamente detalhista, em muitos casos define direitos sem que aponte as obrigações correspondentes, falta ser regulamentada em muitos pontos, já passou por pelo menos 80 emendas e, infelizmente, tem seus princípios ignorados pela grande maioria da população. Nada disso a desqualifica, nem mesmo a desconexão, em muitos aspectos, entre suas determinações e a realidade do país, como mostrou o caderno especial publicado ontem por este jornal.

Aprovada depois de longo período de ditadura, a Constituição representou avanços que muitas lideranças consideravam impossíveis. Resistiu às pressões para que, de um lado, fosse conservadora demais e, de outro, excessivamente progressista. Balanços feitos sistematicamente apontam que foi a lei possível, com alguns trechos que poderiam ter sido evitados, com outros que exigem ainda hoje nova abordagem, mas com um conjunto amplamente positivo. O que a Carta de 1988 assegura é a hegemonia de uma figura que democracias sólidas reconheciam há séculos e que no Brasil ainda era quase desprezada – o cidadão, a quem governos, políticos e instituições devem satisfação e a garantia de direitos individuais e coletivos.

O brasileiro contemplado pela Carta constata, no entanto, que o resultado do esforço dos constituintes está, muitas vezes, em confronto com suas demandas cotidianas. São ignoradas, para citar exemplos básicos, as regras definidas para o acesso universal à saúde pública e à educação, exatamente porque União, Estados e municípios não compartilham, em ambos os casos, o cumprimento do que está escrito. É excessiva também a concentração de poder e de recursos pela União, enquanto as unidades federativas e os municípios são cada vez menos autônomos e dependentes da boa vontade do poder central.

Na área da estrutura e da representação política, o país enfrenta distorções crônicas, com excesso de partidos, e erros recentes, como a adoção, por uma das tantas emendas, do instituto da reeleição, que contribuiu para o aumento do clientelismo e da corrupção. Mas o que importa é que a Constituição mantém, na essência, os valores que a inspiraram e que dão ao país a segurança institucional necessária para que se viabilize, mesmo que parcialmente, o que se proclamou em 1988.

domingo, 29 de setembro de 2013

A CONSTITUIÇÃO DO POVO

REVISTA ISTO É N° Edição: 2289 | 27.Set.13

Em 1988, o Congresso se tornou casa de encontro do povo, com choques e embates. E isso devemos celebrar

Por Michel Temer




Milhões de pessoas ocuparam as ruas no último mês de junho em dezenas de cidades brasileiras. O Brasil ergueu-se de seu berço esplêndido de forma absolutamente democrática em sua ação reivindicatória. Observe-se que todas as garantias legais foram asseguradas ao povo para que ele protestasse, reclamasse, contestasse. É um país muito diferente de décadas passadas. A grande maioria dos brasileiros jamais passou por um regime de exceção. Portanto, recontar essa trajetória é imprescindível para quem não viveu os tempos anteriores a essa liberdade estabelecida no País a partir da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.

Vivemos hoje tempos de estabilidade, democracia e solidez institucional. Nem sempre foi assim. E foi dura a histórica batalha que nos permitiu transformar essa conquista em bem acessível a todos os brasileiros.

Registro: o Brasil viveu de 1964 a 1985 em um sistema centralizador e autoritário, que terminou graças a movimento popular de ocupação das ruas, avenidas e praças. Ao fim desse período, houve a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Essa convocação não foi ato fundado na Constituição de 1967. Embora rotulada de emenda, não era ato jurídico, mas político, já que rompia com a ordem jurídica estabelecida. Ou seja, foi um ato político o deflagrador da inauguração de um novo Estado brasileiro, extremamente democrático e participativo.

Recordo que, mesmo antes da instalação da Assembleia Constituinte, houve convocação de alguns juristas, ditos notáveis, para elaborarem anteprojeto da Constituição. E o fizeram com os moldes do parlamentarismo.

Quando o Congresso Nacional foi convertido em Assembleia Constituinte, optou-se por formalizar novo projeto de Constituição, deixando de lado a fórmula estabelecida pela comissão dos notáveis. Como isso se deu? Instalada a constituinte, o então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, foi eleito presidente da Assembleia. Distribuiu os temas entre várias comissões. Formaram-se as comissões da Organização dos Poderes, da Ordem Econômica e Social, dos Direitos Individuais, etc. Em cada comissão havia subcomissões, como a do Poder Judiciário, do Executivo e do Legislativo. Essas subcomissões realizaram os seus trabalhos, que foram reunidos pelas Comissões Temáticas. Ao final, uma Comissão de Sistematização juntou os vários textos. Nesse período houve muitos conflitos de natureza política, com intensa participação da sociedade civil organizada, de sindicatos, representantes de setores econômicos, grupos de interesse, “lobbies” e ações reivindicatórias de diversos matizes. O Congresso se tornou a casa de encontro do povo brasileiro, às vezes com choques e embates.



Em certos momentos, contestou-se o próprio texto constitucional. Relembro a figura do “centrão” (grupo de constituintes que tentou impedir os trabalhos, pois não se conformava com os dizeres que vieram das comissões temáticas). Mas a habilidade dos constituintes resultou em acordo geral e dele saíram textos condizentes com o pensamento da maioria – representação clara e o mais precisa possível da vontade popular. Feito o trabalho da Comissão de Sistematização, passou-se à votação dos temas no Plenário: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Foram dias e noites seguidas, incluindo fins de semana, em votações. O voto era nominal e computado à mão. Constituiu-se, depois, a Comissão de Redação, que formatou o texto final depois de passá-lo por filólogos, que examinaram o português do projeto de Constituição. Depois do trabalho da Comissão de Redação, deu-se a votação final da Constituição e a sua promulgação, numa data muito festejada por todos os brasileiros no Congresso Nacional: 5 de outubro de 1988.

Pronta, a Constituição foi muito criticada. Muitos sustentavam a necessidade de Carta sintética, principiológica, sob o argumento de que, se assim fosse, daria margem maior de escolha para o Legislativo e para o Judiciário. Ao contrário, detalhada como foi, restringiu a margem de atuação do legislador comum. Daí a razão pela qual hoje tramitam pela Casa mais de mil emendas e, a essa altura, já se promulgaram 67 emendas constitucionais, além das seis emendas de revisão. Como tudo está previsto no texto constitucional, quando se quer fazer modificação, impõe-se a alteração do próprio texto.

Ao longo do tempo, a Constituição foi muito bem aplicada e passou a ser saudada como instrumento de estabilidade das nossas instituições. Um dos aspectos a chamar atenção no texto é que nele se fez amálgama da democracia dos princípios liberais com a democracia dos princípios sociais. Trouxe, de um lado, elenco extraordinário de direitos individuais e de liberdades públicas. Basta ler o seu Artigo 5º para verificar como é longo o elenco de direitos. Portanto, as liberdades individuais e públicas, como de imprensa, informação e associação, foram abundantemente previstas e praticadas a partir da Constituição.

Com o passar do tempo, verificou-se que não bastavam essas liberdades. Era preciso ir além. Surgiu então a cobrança por princípios da democracia social, que, aplicados, importaram no acesso de mais de 35 milhões de pessoas para a classe média. São exemplos: o direito à moradia e o direito à alimentação. Aparentemente, são normas que não têm imediato poder impositivo, porque são regras programáticas, mas que exigem conduta para o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que não se podem desviar desses propósitos. Não foi sem razão que, num dado momento, criou-se o Bolsa Família e que se lançou projeto como o Minha Casa Minha Vida. Os preceitos sociais estão previstos na Constituição, foram exigidos pelo povo e, desde sua promulgação, realizados pelos governos desde então.

A aplicação do texto constitucional nos afastou de qualquer crise institucional. Hoje, as instituições estão, em sua plenitude, exercendo todas as suas atribuições e competências. Temos absoluta tranquilidade política, econômica, social e institucional. Por isso, podemos dizer que, em outubro de 1988, houve um encontro do povo com suas instituições. Devemos celebrar.

Michel Temer é vice-Presidente da República e Deputado Constituinte em 1988

CONSTITUIÇÃO DE CONQUISTAS E UTOPIAS

 



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

PÁGINA 10 | ROSANE DE OLIVEIRA


Com 25 anos de vida, a Constituição já sofreu tantas plásticas, que está irreconhecível em alguns pontos. Caíram algumas fantasias, criaram-se outras, multiplicam-se as propostas de emendas que, se aprovadas, podem transformar a Carta num monstrengo. Escrita na transição da ditadura para a democracia, a Constituição de 1988 trouxe inovações saudáveis, mas foi pródiga na concessão de benefícios que se revelaram desastrosos para as contas públicas.

Se todos os artigos fossem aplicados, o Brasil seria um país sem discriminação, sem fome, sem miséria, com um salário mínimo capaz de satisfazer as necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Na prática, boa parte do que está escrito nunca saiu do papel.

Os mais jovens talvez não lembrem que a Constituição que consagrou o voto aos 16 anos também limitou o juro em 12%. Durante a vigência desse artigo, o juro andou pela casa de 50%. Depois de revogado, a taxa chegou a menos de 12%, como consequência de políticas, não de imposição legal.

Passados 25 anos, os próprios constituintes são capazes de olhar para trás e apontar os equívocos cometidos com a melhor das intenções. No afã de agradar aos setores organizados que pressionavam pela inclusão de mais e mais direitos, os deputados acabaram aprovando benesses sem se preocupar com o custo que teriam para o país. Um deles, responsável por uma conta de bilhões de reais em precatórios, estava no capítulo das pensões. Atropelando a lógica, a Constituição instituiu a pensão integral para a viúva de servidores públicos. A regra já foi alterada, mas enquanto esteve em vigor produziu um passivo que até hoje Estados e municípios não conseguiram quitar.

Um dos problemas da Constituição brasileira é ser detalhista demais. Questões que deveriam ser reguladas por lei ordinária foram incluídas na Carta, forçando a revisão contínua para se adaptar aos novos tempos. A Constituição nasceu com 250 artigos nas disposições permanentes, mais 97 nas transitórias, subdivididos em incisos e parágrafos. O resultado é um emaranhado de normas que, pela imprecisão do texto, não raro dividem os ministros do Supremo Tribunal Federal, encarregados de interpretá-la.


ALIÁS

Por mais imperfeita que seja a Constituição de 1988, quem defende a convocação de uma Constituinte para reescrevê-la deve levar em conta o risco de o novo texto sair pior do que o atual.

CONSTITUIÇÃO 25 ANOS DE UTOPIA

 



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Tom utópico é tema controverso


Antes mesmo de entrar em vigor, ela já foi chamada de utópica. O dia seguinte à promulgação teve o efeito de um banho de água fria: na prática, o Brasil continuava o mesmo, e a Carta Cidadã, repleta de boas intenções, parecia longe de realidade. Vinte e cinco anos depois, a controvérsia continua.

– Quem esperava mudanças imediatas era ingênuo. Não acho a Constituição utópica. É claro que ela estabelece objetivos que, na melhor das hipóteses, demorarão muito para serem atingidos. Mas objetivos têm essa função – diz Virgílio Afonso da Silva, docente de Direito da USP.

Professor da Escola do Ministério Público, Eduardo Carrion alega que o texto seria “medíocre” se não alargasse os “horizontes possíveis”. Para o ex-ministro e ex-deputado constituinte Nelson Jobim (PMDB), não há problema em ser utópico:

– Toda Constituição tem de ser assim. Se não acenar para um futuro de conquistas, de avanços, ela tem a intenção de congelar o mundo no estado em que se encontra.

Esse eterno “vir a ser” vale principalmente para os direitos econômicos e sociais previstos no documento, argumenta o ex-parlamentar.

– Os direitos civis e políticos se satisfazem pelo mero exercício, como o direito de votar e de ir e vir. Já os econômicos e sociais, alguém tem de pagar. E aí vem um problema básico, que é a incapacidade orçamentária do Estado. Isso depende do desenvolvimento do país – pondera ele.

O fato é que, em 25 anos, 112 dispositivos sequer foram regulamentados. Os constituintes preocuparam-se em estabelecer metas, mas muitas delas, até hoje, não foram colocadas em prática.

*

Em junho de 1988, um dia após o Centrão garantir, com votos do PMDB, um mandato de cinco anos a Sarney, Mario Covas pediu a palavra no plenário. Em um duro discurso, o líder do bloco progressista anunciou que estava de saída da legenda:

– É decisão tomada por esse parlamentar de deixar o PMDB. Sou um homem nitidamente dessintonizado com a maioria da bancada hoje. Os fatos de ontem provaram isso.

Dias depois, Covas estava comandando, com Franco Montoro, a fundação do PSDB, levando consigo figuras como Fernando Henrique, futuro presidente do país.

A DURA TAREFA DE TIRAR DO PAPEL



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

A Carta garantiu a estabilidade democrática, mas há muito a ser feito



Pergunte ao porteiro do prédio ou ao vendedor de jornais da esquina: todos, em alguma medida, conhecem seus direitos. É provável que nunca tenham lido a Constituição, mas foi ela que, com todas as suas imperfeições, assegurou a transição de uma cultura da repressão para uma realidade na qual as garantias fundamentais estão no centro da vida social.

Sob a égide da Carta Cidadã, o Brasil reconciliou-se com a democracia e ampliou horizontes.

– Uma nova Constituição sempre é um recomeço, e a de 1988 foi recebida com grande euforia. Depois, veio uma certa frustração, porque as coisas não mudaram da noite para o dia. O tempo passou, e, agora, chegamos a um ponto de equilíbrio. Há coisas boas e outras nem tanto, mas o saldo é positivo – sintetiza Alexandre Mariotti, professor de Direito Constitucional da PUCRS.

De 1988 para cá, os brasileiros testemunharam crises econômicas, foram às ruas exigir o impeachment de um presidente e viram um ex-operário e uma mulher chegarem ao poder. O país mudou sem ameaças de golpe.

– O processo de redemocratização foi como o rompimento de uma barragem. Aos poucos, a enxurrada reencontrou o leito. O resultado é que estamos vivendo o mais longo ciclo democrático do país – avalia o ex-vice-governador João Gilberto Lucas Coelho, que liderou a Comissão de Acompanhamento Popular da Constituinte.

Tudo isso não significa que inexistam falhas, a começar pela dificuldade de concretizar o que está no papel. Ingo Sarlet, especialista em Teoria dos Direitos Fundamentais, cita o exemplo da saúde. Embora o SUS seja uma conquista indiscutível, há quem morra à espera de atendimento.

– Quando o povo exige mais saúde e educação, o que ele quer é o cumprimento da Constituição. Em certa medida, as manifestações de junho foram uma evidência disso – diz Sarlet.

A incapacidade de fazer valer a lei é o que o professor Eduardo Carrion chama de “déficit de Constituição”. Para explicar o problema, ele compara o documento a uma carta de navegação. Ela pode ser perfeita, mas de nada servirá se a tripulação não ajudar.

– O processo Constituinte prolonga-se no dia a dia e exige participação da sociedade – resume.

Do contrário, a viagem em busca de um país mais justo pode nunca chegar ao destino esperado.




EMENDAS DIVIDEM JURISTAS



29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Mudanças aprovadas desde 1988 já aumentaram texto da Carta em 28,7%


Mais emendada da história do Brasil, a Constituição de 1988 chega aos 25 anos com um texto quase 30% maior do que o original.

Esse afã reformador tem sido motivo de controvérsia entre juristas e cientistas políticos, que se dividem entre as críticas ao excesso de alterações – algumas consideradas casuísticas – e a defesa da necessidade de atualização do documento.

A primeira modificação ocorreu em 1992, para limitar as despesas com a remuneração de deputados estaduais e vereadores. Entre 1993 e 1994, houve a revisão constitucional, que estava prevista na própria Carta e acabou resultando em seis emendas. Hoje, são 80. Tudo isso rendeu à Constituição apelidos como “remendão”, “Frankenstein” e “colcha de retalhos”. Para o constitucionalista Sérgio Borja, professor da UFRGS, a situação preocupa:

– Está acontecendo um desmonte progressivo. A Constituição virou uma metamorfose ambulante.

Já a cientista política Celina Souza, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), argumenta que as emendas são fundamentais para tornar possível a transformação dos direitos previstos no texto em políticas públicas:

– Sem elas, muita coisa teria ficado para trás.

De mesma opinião, o constitucionalista Alexandre Mariotti entende que “não há nada demais em mudar”. A remodelagem faz com que o texto continue vivo e atual. Assessor de Ulysses na Constituinte, o jurista Miguel Reale Júnior concorda:

– Seria absurdo se não mudasse. Estamos no mundo da urgência, e os fatos que ocorreram de 1988 para cá alteraram completamente o quadro social, político e econômico.

Embora compartilhe da avaliação, o professor Ingo Sarlet faz uma ponderação. O que preocupa, segundo ele, é o risco do “emendismo desenfreado”, uma realidade no Brasil:

– Criou-se uma cultura de que é por emenda que se resolve tudo, e não deveria ser assim. O que precisamos é corrigir aspectos pontuais e, principalmente, fazer valer o que já está na Constituição.

*

A Constituinte tornaria o Brasil ingovernável. Foi o que Sarney disse na TV. Era um apelo por mais moderação às vésperas da votação do texto em primeiro turno.

Ulysses, no dia seguinte, teve de responder. Frasista como poucos, comparou Sarney ao Velho do Restelo, personagem de Os Lusíadas. Enquanto os portugueses desbravavam o oceano para chegar a novas terras – imagem usada por Ulysses para definir os constituintes –, o Velho do Restelo, ou Sarney, ficava a resmungar, dizendo que tudo era desnecessário.

Mais tarde, houve um jantar reservado na residência de Ulysses. Último a chegar, Ibsen Pinheiro logo foi indagado pelo colega: – E aí, alguma novidade no ambiente?

Também frasista, Ibsen respondeu fazendo piada:

– A única novidade é que o Sarney disse que o Velho do Restelo é a puta que o pariu!




A PROMULGAÇÃO E O DILEMA PETISTA




ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO


Trancafiados em uma sala, os 16 deputados do PT travavam uma dura batalha para decidir se o partido assinaria ou não a Constituição. A esquerda, principalmente a ala mais radical, então representada por PT e PC do B, se sentia derrotada. Sonhos haviam sido abreviados, e a derrota na pauta da reforma agrária ainda era recente e dolorida.

– Havia um grupo tão radical, que, imagine, não queria assinar a Constituição. Tive de fazer uma luta. Eu disse: “Não vamos assinar? Não? Então, onde estão as armas? Vamos para o morro. Quem não aceita as regras do jogo da sociedade em que vive é um revolucionário. Tem de ir para o morro dar tiro”. Ficou todo mundo com cara de tacho – recorda Plínio de Arruda Sampaio, hoje no PSOL.

A característica dos constituintes petistas acirrou ainda mais o debate. Idealismo e radicalidade preponderavam. Lula era o líder, José Genoino, o mais atuante em plenário, e Florestan Fernandes, a face do intelectualismo. Com tantas personalidades inquietas, a decisão da bancada não poderia ser fácil.

– Alguns diziam que, ao votar contra o texto, tínhamos de ser coerentes e não assinar a Constituição. Outro grupo mais moderado, do qual eu fazia parte, dizia o contrário. Deveríamos votar contra porque queríamos mais, mas assinar para reconhecer que o texto, ainda assim, era um avanço – lembra Paulo Paim.

O PT decidiu votar contra o texto global – uma forma de protesto – e assinar a Constituinte.

– Até hoje, falam que não assinamos. O PT assinou. E sou obrigado a reconhecer que a Constituinte foi um avanço em todos os sentidos – diz Paim.

Passados 20 meses, chegava o dia da promulgação: 5 de outubro de 1988. Ulysses subiu a rampa do Congresso ao lado de Sarney e do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rafael Mayer. Foram saudados com tiros de canhão, foguetes. Passaram as tropas em revista. O Hino Nacional ecoava pelos gramados do parlamento.

O clima era festivo e, principalmente, de alívio. Ulysses tomou lugar à mesa da presidência da Câmara. Foi ovacionado pelos seus pares. Triunfante, ergueu os braços enquanto recebia uma sinfonia de aplausos do plenário. Ao fazer o juramento à nova Constituição, Sarney, emocionado, ergueu a mão direita, trêmula.

Para muitos, foi naquele dia que Ulysses cunhou para a posteridade a expressão “Constituição Cidadã”, utilizada até hoje para definir uma Carta de caráter progressista. Tribuno destacado, o líder peemedebista registrou de vez o seu nome na história ao declarar, no discurso de promulgação, palavras fortes:

– A nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. (...) Quanto à Constituição, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. (...) Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. (...) Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda, Brasil!

CONSTITUIÇÃO 25 ANOS, REFORMA AGRÁRIA CAUSOU O MAIS CONFLITUOSO EMBATE




ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Receoso, FH pede cautela a Paulo Paim

Diante da disputa envolvendo a reforma agrária, senador diz temer novo golpe



Era a reta final da longa jornada. Em maio de 1988, a Constituinte registrou o seu mais conflituoso embate: a votação da reforma agrária. O bloco de esquerda apostava alto no tema, mobilizava os sem-terra, ocupava Brasília. A UDR também estava engajada, levando milhares de produtores e seus empregados à capital federal. O Centrão já estava enfraquecido, mas a ala conservadora conseguiu se unir nesta pauta.

Havia temor de retrocesso. A questão da terra tinha sido um dos motivos para o golpe de 1964. Mas a esquerda não desistia de pressionar pela aprovação do projeto da Comissão de Sistematização que autorizava a desapropriação de terras pequenas, médias ou grandes, produtivas ou não, para fins de reforma agrária.

Os conservadores queriam excluir a possibilidade de tomada de propriedades produtivas. Às vésperas da votação, FH pediu uma conversa reservada com o então deputado Paulo Paim (PT-RS). O senador paulista estava preocupado.

– Fernando Henrique me pediu que não esquecêssemos que estávamos saindo de uma ditadura. Se a gente exigisse um texto muito radical, poderia haver retrocesso democrático. É claro que a gente refletiu, mas eu disse: “Vamos fazer o embate e seja o que Deus quiser”. Acabamos pressionando ao máximo. Sempre tive uma relação boa com o Fernando. Ele era da esquerda do PMDB e pedia que fôssemos devagar. Todo cuidado era pouco. Ele falava de forma respeitosa e até carinhosa – relata Paim, hoje senador.

Como a polarização em torno da matéria era grande, os constituintes contavam os votos e caçavam os ausentes. Voos foram fretados pelos próprios parlamentares para levar a Brasília aqueles que haviam ficado sem transporte aéreo de carreira nos seus Estados. Em dado momento, a polícia e o Exército foram chamados para dar segurança no trajeto entre o aeroporto e o Congresso, tomado por caminhonetes abarrotadas de militantes dos dois lados.

Na votação final, o Centrão conseguiu os votos suficientes para proteger a grande propriedade produtiva da reforma agrária. O bloco conservador chegou a se aproximar de um acordo de flexibilização com Mario Covas, mas o presidente da UDR, Ronaldo Caiado, hoje deputado federal pelo DEM, roubou a cena ao proclamar: “O acordo é falso! O acordo é falso!”. Nos bastidores, dizia-se que o líder ruralista havia decidido a questão da reforma agrária no lugar dos constituintes. Ao final da votação, com a vitória, ele foi carregado nos braços pelos companheiros.

– O texto deveria dizer apenas que a terra poderia ser desapropriada por interesse social para fins de reforma agrária. Só isso. O resto se faria por lei complementar. Quando se avançou para a discussão da propriedade produtiva, tensionou demais e não se avançou quase nada. A UDR veio com as suas teses – lamenta Roberto Freire, à época no PCB e hoje presidente nacional do PPS e deputado federal por São Paulo.

Até hoje, essa é a derrota mais lastimada pela esquerda, embora muitos acreditem que o texto inicial era radical demais e não encontraria apoio na população.

– A reforma agrária foi frustrada. Não que seja impossível, mas hoje é difícil de fazer. Tudo vai parar na Justiça, é demorado – avalia Plínio de Arruda Sampaio, que foi um dos relatores da subcomissão do tema na Constituinte.

TRAIDORES DO POVO



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Os “traidores do povo” sofrem




Constituintes do Centrão chegavam em seus Estados e viam os seus rostos nos postes. Eram cartazes simples, colados aos milhares pelas ruas, com uma foto do deputado ou senador e uma inscrição em destaque: traidor do povo!

– Estávamos articulados com os movimentos populares. Idealizamos esses cartazes, e deu certo. Cansei de receber parlamentares que me diziam: “Não votarei contra vocês, não deixa colocar os cartazes” – diz o senador Paulo Paim (PT-RS).

– A esquerda era craque em difamar. Éramos tratados como impuros e ladrões. Mas, se não fosse o Centrão, não sei o que seria da Constituição – diz o ex-deputado Luis Roberto Ponte (PMDB-RS).

O fato é que a alcunha de traidor do povo foi apenas o prelúdio do declínio do Centrão. Sozinho, o bloco fez mais de 280 votos apenas para alterar o regimento. Nas outras votações, limitava-se a obstruir as pautas da esquerda consideradas radicais.

Como nenhum dos lados alcançava a maioria absoluta, restavam os acordos. Centrão e progressistas chegavam a um meio termo e aprovavam a matéria em consenso, caso das 44 horas semanais de trabalho, do pagamento de um terço de férias e do direito de greve. Sem consenso, a alternativa era dizer que haveria regulamentação posterior por lei.

A erosão do Centrão também decorreu do fato de que vários conservadores eram nacionalistas. Eles votaram com os progressistas em praticamente todo o capítulo da ordem econômica. Monopolizaram a exploração do petróleo, do solo, dos minérios. Protegeram a empresa nacional.

O golpe fatal no bloco foi dado graças à ação de uma incontrolável facção fisiológica. Sem pudores, esses parlamentares passaram a indicar pessoas próximas para cargos no governo. O mensalão da época, na avaliação de Ponte, era a distribuição de concessões de rádio e TV. O então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, distribuiu centenas delas para aliados. Depois da Constituinte, atuando como chefe da Casa Civil, Ponte disse a Sarney que era preciso dar um fim à prática, que ainda persistia. O presidente não titubeou:

– Ponte, essa é a coisa mais certa que eu faço. Estou democratizando a comunicação. Repassamos as concessões a grupos diferentes.

Líderes do Centrão também falaram demais. Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP) disse a Sarney uma célebre frase: “É dando que se recebe, presidente”, sugerindo mais cargos aos aliados. Daso Coimbra (PMDB-RJ), em entrevista, desabafou.

– Se falar tudo o que sei, mandam me matar – disse ele, referindo-se aos conchavos de gabinetes. As reuniões no Carlton Hotel também traziam dor de cabeça. Era explícito o lobby.

– As multinacionais devem ter dado dinheiro, sim. Não vou dizer que não – recorda Ponte, referindo-se à conduta de parte dos seus colegas.

Com o tempo, o Centrão estava em frangalhos.

SARNEY ACENA COM PARLAMENTARISMO




29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Sarney põe time em campo

Presidente chega a acenar com o parlamentarismo, mas acordo não sai


Com as lideranças progressistas dominando a Sistematização e pressionando cada vez mais pelos quatro anos para Sarney e pelo parlamentarismo, o então presidente passou a se articular. Mas é controverso o papel de Sarney na formação do Centrão. Alguns dizem que os conservadores se uniram naturalmente por estarem alijados, apenas observando a esquerda construir o seu mundo ideal.

Miro Teixeira (PDT-RJ) isenta Sarney e diz que a articulação começou pela União Democrática Ruralista (UDR), presidida por Ronaldo Caiado, que repelia a proposta original de reforma agrária. Há, contudo, interpretações de que Sarney foi, sim, decisivo. Pedro Simon (PMDB-RS), então governador, relata o teor de uma conversa com Ulysses, recebido por ele no Piratini naquele período:

– No encontro, percebemos que algo estava acontecendo. Era gente nomeada em cargos, novos ministros. O Sarney entrou para rachar.

Em 1988, Simon recebeu uma ligação do presidente. Ele pedia a intermediação de um acordo com Mario Covas, líder do PMDB. Sarney aceitava implantar o parlamentarismo ainda no seu mandato, desde que tivesse cinco anos de governo.

– Sarney me disse: “O Covas tá louco. Quer quatro anos de qualquer jeito”. Fui falar com Covas. Cobrei dele, disse que o acordo garantiria o parlamentarismo. Mas ele não aceitou. Covas era um baita cara, era incrível. Mas aquele foi o maior erro do nosso grupo – relata Simon.

O debate sobre o sistema e o tempo de governo era infindável. Com a derrota das Diretas Já em 1984, crescia a ansiedade pela retomada da disputa pela Presidência no voto o quanto antes. Muitos dos futuros candidatos ao Planalto estavam na Constituinte.

– Covas, FH, Ulysses, Lula, Afif. Todos parlamentares paulistas que pretendiam ser presidentes. Isso levou a discussão do tempo de mandato do Sarney e do sistema de governo a gastar uma energia enorme da Constituinte. Um falso problema. Foi uma pena, afetou a modernização do Estado brasileiro – avalia Ibsen Pinheiro.

Como Covas não aceitou o acordo intermediado por Pedro Simon, inviabilizando o convencimento dos demais progressistas, o Centrão conseguiu atropelar. Primeiro, contando com votos do PT e do PDT, aprovou o presidencialismo. Depois, enfrentando o bloco progressista, garantiu os cinco anos de mandato.

O drama da ocasião é que o presidencialismo foi aprovado em conjunto com vários itens do parlamentarismo, como as medidas provisórias (MPs) e a pluralidade partidária.

– Lembro que copiei exatamente o texto da constituição italiana, apenas com a devida tradução, para definir o nosso modelo de MP. Mas ela só existe no parlamentarismo, e se não é aprovada, é dissolvido o governo. No caso do Brasil, o resultado é um chefe de Executivo superpoderoso e um Congresso enxovalhado – diz José Fogaça (PMDB-RS), ex-relator da subcomissão de sistema de governo.

Sarney conseguiu manter os cinco anos, mas passou a ser acusado de ter ampliado o próprio mandato com o seu poder sobre a Constituinte.

– A batalha e a propaganda foram tão grandes que o Sarney entrou para a história como o presidente que aumentou o seu mandato de quatro para cinco anos. Na verdade, diminuiu de seis para cinco – contrapõe Ibsen Pinheiro.

*

Sarney chamou Paulo Brossard e o avisou que renunciaria caso a Constituinte decidisse reduzir o seu mandato para quatro anos. Espantado, o então ministro da Justiça fez uma pergunta:

– Isso é uma inclinação ou uma resolução, presidente?

Era uma resolução. O ministro, então, convocou, por carta reservada, uma reunião com Ulysses Guimarães (PMDB), Marco Maciel (PFL), Jarbas Passarinho (PDS) e Paiva Muniz (PTB), presidentes das siglas que tinham a maioria na Constituinte.

– Pedi que não interpretassem como ameaça e contei que Sarney renunciaria – relembra o ex-ministro.

Ele não pediu uma resposta. E ela jamais veio. Ninguém voltou a tocar no assunto até o fim da Constituinte.

– O tema foi morrendo naturalmente. Penso que causou uma reflexão nas lideranças – diz Brossard.

O CENTRÃO DECLARA GUERRA



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

O Centrão declara guerra

Conservadores montam bloco para romper isolamento e derrotar a esquerda



Diante de um plenário tenso e abarrotado, o deputado José Lourenço (PFL-BA), um dos mais exaltados do Centrão, pegou um exemplar do texto proposto pela Comissão de Sistematização, aproximou-se do microfone de apartes e anunciou que iria rasgá-lo. Em um gesto de ódio, em outubro de 1987, partiu as folhas ao meio. Era a declaração de guerra dos conservadores. Eles tinham tornado a mudança do regimento e de itens do texto da Sistematização questão fundamental.

Meses antes, em junho, essa poderosa comissão iniciava suas atividades. Com 93 membros, seria responsável por unificar os textos das subcomissões e comissões que haviam atuado entre abril e junho e apresentar uma proposta de Constituição para ser votada. Nos cinco meses de funcionamento da Comissão de Sistematização, dominada pela intelectualidade dos progressistas, dos moderados e dos parlamentaristas, os conservadores e o baixo clero ficaram sem função. Andavam a esmo pelo Congresso. Foram apelidados de “turistas”.

O alijamento do pensamento médio e a aprovação de propostas consideradas radicais – como a reforma agrária com direito à desapropriação de grandes terras produtivas e a proibição da “demissão imotivada” no serviço privado – começaram a trazer inquietações. Outras polêmicas eram a adoção do parlamentarismo e um mandato de quatro anos para Sarney.

Eram as senhas para o início da rebelião. Pelas regras vigentes, seria quase impossível modificar isso em plenário, onde seriam necessários 280 votos. A apresentação de novas emendas também era proibida. Ou seja, havia um grande engessamento que favorecia as decisões da Sistematização.

– O Centrão foi consequência de uma maioria descontente, por estar marginalizada. Juntaram-se a isso o conservadorismo e os interesses do governo Sarney – constata João Gilberto Lucas Coelho.

– A Comissão de Sistematização não representava a média do pensamento do plenário. Ulysses teve de interromper os trabalhos por vários dias para fazer os ajustes propostos pelo Centrão. Quando ele anunciou isso, o Haroldo Lima (PC do B) se indignou, subiu em uma mesa e passou a gritar. Fez uma bola de papel e jogou na direção do Ulysses. Ele errou, mas foi uma confusão tremenda – diz o deputado Miro Teixeira (PMDB-RJ), hoje no PDT.

– A Sistematização tinha um projeto de tendência socialista. Ao perceber isso, organizamos um levante – diz Guilherme Afif Domingos (PL-SP), hoje ministro de Dilma Rousseff pelo PSD.

A esquerda, integrada por metade do PMDB, PT, PDT, PC do B, PCB e PSB, refuta a tese de que defendia ideais “comunistas”.

– Não se propunha o socialismo, mas se defendia um Estado sob controle público, e não privado – descreve o ex-deputado Olívio Dutra (PT-RS).

Em dezembro, o Centrão atropelou a ala progressista com 290 votos, aprovando a mudança regimental. Ganhou notoriedade, nesse período, o deputado Nelson Jobim (PMDB-RS). Como passaram a ser aceitos novos textos em plenário, Jobim criou o expediente da emenda aglutinativa, que permitia a junção de partes de textos distintos para escrever um outro de consenso entre os blocos políticos. Até hoje esse método é utilizado.

Depois da vitória da reforma do regimento, o bloco conservador jamais tornaria a reunir sozinho a maioria absoluta, engoliria derrotas, seria humilhado, teria de fazer vários acordos de plenário por não conseguir impor sua vontade, mas também voltaria a frustrar a esquerda.

– Tudo o que era reacionário, contra os interesses dos pobres, do povo e da nação, vinha do Centrão – opina o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, então no PT e hoje militante do PSOL.

No entanto, muitos dos que se opuseram à rebelião conservadora mudaram de opinião. Creem, hoje, que a alteração do regimento foi importante.

– A Comissão de Sistematização era tão sectária que chegou ao ponto de exigir maioria para derrubar o texto que a minoria havia escrito. Essa foi a primeira causa do surgimento do Centrão: a mudança do regimento. Perdi essa batalha. Ainda bem. O Centrão não era reacionário. Tinha reacionários, mas era essencialmente conservador, para o bem e para o mal. Esse conflito brecou os voos de generosidade sem limites da Comissão de Sistematização – analisa o ex-deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS).

*

Relator da Comissão de Sistematização, Bernardo Cabral era o dono da caneta mais poderosa do país. O que ele escrevesse, fatalmente se tornaria lei. Por conta do poder em suas mãos, Cabral se tornou alvo. Primeiro, foram as ameaças de morte. Depois, pessoas que se identificavam como integrantes do Comando Delta passaram a insinuar o sequestro de sua neta, então com cinco anos. Não faziam nenhuma exigência. Queriam intimidar. A autoria jamais foi esclarecida. Cabral confidenciou os fatos somente a Ulysses e ao então secretário-geral da Constituinte, Paulo Afonso. Ambos lhe aconselharam a não divulgá-los. Deixar cair no esquecimento. E assim foi.

– Passei noites em claro, me sentido em uma ingrata peregrinação, mas sem nunca desanimar – diz Cabral.

O PODER É MELHOR QUE O ORGASMO



ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Empossado, Sarney cumpre a promessa de Tancredo



Eleito pelo Colégio Eleitoral em 1985 – após o fracasso da campanha das Diretas, um ano antes –, Tancredo Neves (PMDB-MG) carregava uma série de sonhos de uma sociedade em transição da ditadura para a democracia. Um deles era a convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). O país precisava de uma nova Carta que norteasse a sociedade, o mercado e o Estado.

Mas Tancredo adoeceu na véspera da posse. Dias depois, morreu, abrindo caminho para o vice. José Sarney se tornava o presidente. Ele decidiu que os eleitos em 1986 seriam os constituintes, acumulando as funções de deputados e senadores.

– Sarney chamou a Constituinte com uma emenda à Carta antiga. Nada o obrigava a isso. Ele garantiu a transição democrática – diz o ex-vice-governador João Gilberto Lucas Coelho (ex-PSDB-RS).

– Justiça seja feita, Sarney tentou cumprir todos os compromissos do Tancredo – afirma o senador Pedro Simon (PMDB-RS).

A Constituinte foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987. Ulysses Guimarães foi eleito o presidente, acumulando o cargo com os comandos da Câmara e do diretório do PMDB. Bem articulado, ele liderava tudo com mão de ferro.

– O Ulysses nos dizia abertamente: “O poder é melhor do que o orgasmo” – conta o ex-senador José Fogaça (PMDB-RS).

Os dois primeiros meses foram gastos com discussões para a formatação do regimento interno, que teve como relator o senador Fernando Henrique Cardoso (então no PMDB-SP). Vencida a etapa, os partidos escolheram os seus líderes. Houve apenas uma surpresa: o senador Mario Covas (SP) superou Luiz Henrique (SC), o favorito, e se tornou líder do PMDB. Covas privilegiou os progressistas nas indicações para as 24 subcomissões e oito comissões que elaboraram os primeiros artigos da Carta. Isso também ocorreu na Comissão de Sistematização, que tinha a tarefa de unir os textos produzidos até então em uma síntese de Constituição.

Numericamente, progressistas-moderados e conservadores costumavam se equivaler nas comissões. No entanto, Covas fez um acordo com o PFL e ficou com a maioria das relatorias para o PMDB. Os progressistas dominaram esses cargos e passaram a produzir textos que não expressavam a média de pensamento do plenário. Problema que não tardaria a acarretar solavancos e surpresas para o futuro da Constituinte e da política brasileira.

O VALE TUDO PELO TEMPO DE MANDATO



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25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO


Sociólogo e político em ascensão, Fernando Henrique Cardoso (SP) tentava discursar na convenção nacional do PMDB, em julho de 1987. Apenas tentava. As vaias e a gritaria de militantes que lotavam o auditório Petrônio Portella, no Senado, o impediam. A algazarra era generalizada. Cânticos, xingamentos e apupos não cessavam.

FH, um dos próceres da ala progressista dirigida por Covas, pretendia defender a adoção do parlamentarismo e um mandato de quatro anos para o presidente José Sarney. Era a questão que rachava o PMDB, sigla majoritária com 303 dos 559 constituintes. Os conservadores e os mais alinhados ao Planalto queriam o presidencialismo e cinco anos para Sarney. Esses temas contaminaram a Constituinte. Todos estavam interessados na sucessão.

Depois de FH ser calado por vaias, o gaúcho João Gilberto Lucas Coelho, então membro da executiva nacional do PMDB, tentou defender a tese dos progressistas. Eles queriam eleições diretas à Presidência em 1988 ou 1989, com o mandato de Sarney acabando logo após a Constituinte. Também não conseguiu falar.

– Sarney tinha um programa social de distribuição de leite à população. Começaram a espalhar entre a sociedade que, se não ficassem os cinco anos para Sarney, o programa iria acabar. A convenção do partido lotou de caravanas vindas de todo o país, com beneficiários dessa política. Sequer eram filiados. As vaias para os progressistas eram ensurdecedoras. O FH foi a liderança mais vaiada. Foi ali que eu pensei: se não consigo falar no meu partido, o que estou fazendo aqui? – diz João Gilberto, à época integrante do Movimento da Unidade Progressista (MUP), esquerda do PMDB.

O episódio da convenção – que acabou não tendo condições para decidir nenhum posicionamento de consenso do PMDB – também é relatado no livro Meu Diário da Constituinte, de Alaor Barbosa.

“Havia duas torcidas organizadas, uniformizadas e treinadas para gritar, urrar, vaiar, aplaudir, cantar slogans. Uma, pró cinco anos. A outra, pró quatro anos de mandato para Sarney”, relatou Alaor, que era assessor do Senado.

Neste período, a cizânia no PMDB era enorme. O grupo de Covas dizia que a missão de Sarney era apenas fazer a transição. Acabada a Constituinte, encerrava-se o mandato. Sarney já havia perdido a paciência. Articulava-se cada vez mais nos bastidores. Argumentava que fora eleito para seis anos de mandato no Colégio Eleitoral. Aceitava reduzir para cinco, mas não acatava um dia a menos sequer.

CONSTITUIÇÃO 25 ANOS, UM SOCO NO PLENARIO




ZERO HORA 29 de setembro de 2013 | N° 17568

25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Um soco em plenário. Briga em torno do regimento expõe disputa que marcaria a Constituinte


Conservadores do lado direito do plenário. Progressistas, do esquerdo. No ambiente da Assembleia Nacional Constituinte, nervos aflorados. Era dezembro de 1987. O grupo multipartidário que se autodenominava Centrão, rebelado contra a nata intelectual esquerdista, dava uma cartada ousada para modificar o regimento interno, abrindo a possibilidade de rediscussão do projeto prévio de Constituição, de “tendência estatizante e utópica”, que estava apto a ser votado.

A ala progressista esperneava, acusava o Centrão de tentar mudar as regras do jogo “para servir aos patrões e derrubar direitos dos trabalhadores”.

Das galerias da Câmara dos Deputados, sindicalistas da CUT e da CGT cuspiam e jogavam moedas na direção dos integrantes do grupo conservador. A disputa pelos microfones, utilizados nos apartes, era crescente. Juarez Antunes (PDT-RJ) se dirigiu ao lado direito do plenário, reduto do Centrão. Ele queria ocupar o microfone, mas logo foi barrado por Gilson Machado (PFL-PE). Enérgico, Roberto Jefferson (PTB-RJ) peitou Antunes, com um empurrão.

O clima esquentou de vez, apimentado por agressões verbais. O pedetista, revoltado, tentou acertar um pontapé nos opositores, mas acabou atingindo um colega de bancada. Mesmo sem ser tocado, Machado não titubeou e soltou um soco que atingiu em cheio o rosto de Antunes.

– Todos estavam puxando e arrancando microfones. O Juarez Antunes chamou o pessoal do Centrão de safado e sem vergonha. Veio um baita cara do Centrão e deu um soco no meio da testa do Juarez. Ele caiu duro, bem na minha frente. Só pude ajudá-lo a levantar – recorda o então deputado federal Paulo Paim (PT-RS), hoje senador.

A sessão teve de ser suspensa. Erguido pelos companheiros, o pedetista tentou avançar em direção ao agressor, mas foi contido. Minutos depois, os trabalhos foram retomados.

O nocaute de Antunes foi o menos dolorido dos golpes sofridos pela esquerda naquele dia. Com 290 votos, o Centrão esmagou o bloco progressista, alterou o regimento e abriu a brecha para modificar o texto – aquele considerado “socialista” – apresentado pelo relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM).

– Foi um dia trágico, de derrota. O plenário estava lotado, levamos para lá os movimentos sociais – lembra, com pesar, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), uma então líder comunitária das favelas cariocas que havia chegado ao Congresso.

A Assembleia Nacional Constituinte não seria mais a mesma após a rebelião dos conservadores, processo que deu origem ao Centrão. Mas a história da Constituição de 1988 começou anos antes, mais precisamente em 1984.


A DIVISÃO DE DEPUTADOS POR PARTIDO EM 1987-1988

PMDB - 303
PMB - 1
PC do B - 3
PFL - 135
PDC - 6
PDS - 38
PDT - 26
PTB - 18
PT - 16
PL - 7
PCB - 3
PSB - 2
PSC - 1
Fonte: Fonte: livro A Sociedade no Parlamento, da Câmara

terça-feira, 24 de setembro de 2013

STF É UM GUARDIÃO FRÁGIL DA CONSTITUIÇÃO

FOLHA.COM 16/12/2011 - 21h00

'STF é um guardião frágil da Constituição'; ouça historiador


FABIO ANDRIGHETTO
da Livraria da Folha


Análises de cada constituição que o país já teve e seu contexto histórico


"A História das Constituições Brasileiras", um exame da maneira nacional de fazer política, dedica um capítulo ao Supremo Tribunal Federal e seu papel na República. Segundo o autor, Marco Antonio Villa, "[STF] é um guardião muito frágil da constituição."

Em entrevista à Livraria da Folha, Villa contou como se desenvolveu o estudo para a edição e a análise do contexto histórico.

"Esse livro, portanto, surgiu depois de constatar que as constituições brasileiras eram exóticas, para dizer o mínimo, tinham várias passagens bizarras e descolamento entre a Constituição e a realidade política brasileira". Ouça.

Publicado pela editora LeYa, o volume é dividido em sete capítulos que descrevem embates políticos, emendas, revoltas e períodos que o país esteve sob o período da ditadura. Leia um trecho do exemplar.

O historiador Marco Antonio Villa também é autor de "Jango: um Perfil", "1932: Imagens de uma Revolução", "História Geral", "História do Brasil", "A Revolução Mexicana", "Vida e Morte no Sertão", "Canudos, História em Versos" e "Carta do Achamento do Brasil".

*

"A História das Constituições Brasileiras"
Autor: Marco Antonio Villa
Editora: LeYa
Páginas: 160
Quanto: R$ 29,75 (preço promocional*)
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

IMPÉRIO DA LEI E DA CONSTITUIÇÃO

Costurada por lobis e dispositivos utópicos



Remendada por mais de 70 emendas, detalhista, confusa e extensa





ZERO HORA 20 de setembro de 2013 | N° 17559

ARTIGOS

Eduardo K.M. Carrion*



Com relação ao acolhimento dos embargos infringentes pelo STF na Ação Penal Originária 470, a do denominado mensalão, convém antes de tudo insistir em que não se trata da absolvição de réus. Os embargos infringentes dependem para sua impetração da existência de pelo menos quatro votos divergentes e fixam-se nos limites da divergência, basicamente com relação aos crimes de formação de quadrilha e de lavagem de dinheiro. Poderá, então, ocorrer, por exemplo, redução da pena com relação ao crime de formação de quadrilha, levando a sua eventual prescrição, mas mantendo-se a condenação dos réus por outros crimes. Poderá também haver pura e simplesmente a absolvição pelo crime de formação de quadrilha. Mas nenhum dos já condenados sairá finalmente impune. A consequência, quando muito, seria a mudança do regime prisional, de regime fechado para regime semiaberto.

Os embargos infringentes são previstos pelo artigo 333 do Regimento Interno do STF, que data de 1980. Sob a égide da Carta Constitucional de 1969, na realidade da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, o mesmo já ocorrendo com a Carta Constitucional de 1967, atribuiu-se ao STF poder normativo primário. Assim, o dispositivo em questão foi recepcionado pela Constituição de 1988 com o status de lei ordinária. Por sua vez, a Lei 8.038, de 1990, que instituiu normas procedimentais para os processos perante o STJ e o STF, não revogou propriamente o dispositivo em questão, nem por substituição, mesmo porque, ao tratar da ação penal originária, limita-se, conforme se deduz do artigo 12, até a instrução. Outra questão seria repensar nosso sistema recursal para o futuro.

Há, ainda, um aspecto importante no acolhimento dos embargos infringentes. A defesa de alguns dos réus já ameaçou com um apelo à Corte Interamericana dos Direitos Humanos. O Artigo 8, 2), h), da Convenção Americana Sobre Direito Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, prevê o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”. Já há precedentes neste sentido na Corte. O acolhimento dos embargos infringentes atende minimamente ao princípio do duplo grau de jurisdição, reclamado pelo Pacto, embora examinados pelo mesmo tribunal.

Natural que haja um relativo desalento por parte da sociedade com relação ao acolhimento dos embargos infringentes. Mas o combate à impunidade e à corrupção é um processo, constituído por momentos e etapas, devendo ser sempre sob o império da lei e da Constituição. Neste sentido, podemos dizer que temos seguramente avançado.


*PROFESSOR TITULAR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA UFRGS E DA FMP


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Sob o império de uma constituição costurada pelos vários lobis, com dispositivos nunca aplicados na prática, com mais de 70 emendas (algumas contraditórias) e extensa, o Brasil segue sem rumo, sem lei, sem justiça e sem ordem. Como confiar numa constituição cheia de direitos particulares e privilégios e poucos deveres e contrapartidas?

Uma constituição que é alterada ao bel prazer do poder político não é uma constituição, mas um instrumento do poder totalitário que faz as suas regras, estabelece seus privilégios e consolida seus interesses particulares se lixando para o povo. A República Federativa do Brasil precisa de uma constituição rígida, enxuta, sistêmica e com dispositivos próprios de uma carta magna, criando condições para o Brasil ser de fato um país livre, justo e soberano, com lei e ordem, com direitos e deveres, com assistencialismo e contrapartidas, com uma justiça coativa e com leis sendo respeitadas, executadas e aplicadas na finalidade e na plenitude, coibindo e punindo com agilidade todos os tipos de ilicitudes e autores, por mais poderosos e influentes que sejam.